segunda-feira, 4 de julho de 2011

Escola e sociedade: relações e possibilidades.

Texto de referência: Nóvoa, António. Relação escola e sociedade: “novas respostas para um velho problema”. In: Volpato, R. et al. Formação de professores. São Paulo: Edunesp, 1998.p.19-39.

            No Brasil,  a partir de 1915 configura-se um momento significativo: o do entusiasmo pela educação, que passa ser a solução de todos os males da sociedade. Essa idéia continua ainda  no imaginário de muitos como o meio de sanar todos os entraves sociais atuais.

O texto de Antonio Nóvoa tem início apontando esse entusiasmo como um  dos equívocos com relação à educação. Baseado em  Ortega y Gasset, o autor nos diz   que uma boa nação não se faz apenas com escola de qualidade , mas também com política, economia, justiça e saúde de qualidade.
Se escola desenvolveu-se desde então com a crença de ser a salvadora de todos os males da sociedade, os professores eram seres especiais e  tinham uma missão nobre e de suma importância, por isso deveriam manter-se numa posição de isolamento, não podiam  misturar-se com o povo e nem com a burguesia, para que se portassem de forma isenta. Nesse processo de isolamento  afastaram-se da comunidade. Para o autor, no triângulo professores, Estado e famílias/comunidade, esse terceiro vértice foi perdido e é ponto fundamental para repensar novas soluções.
O autor propõe expor  seu texto em três momentos: num primeiro momento abordará os perigos de visões pontuais da escola, ora como salvadora, ora como mera reprodutora da sociedade. Em segundo lugar, explanará sobre a  identidade dos professores e por fim  associará as duas primeiras reflexões para fundamentar as possíveis mudanças no cenário educativo.

A escola e os professores como regeneradores da sociedade

À visão da escola como responsável pelo progresso civilizacional e instituição notoriamente benéfica, o autor contrapõe  a idéia da  escola como  instituição maléfica e  criação diabólica, utilizando para isso a posição de  Adolphe Ferrière, pedagogo dos anos 20, e  a  célebre história da pedagogia sobre “O diabo e a escola”.

Ao longo do século XX, por força das constantes modificações nos modos de governo, a escola transformou-se no elemento central do processo de homogeneização da sociedade e na criação de modelos de civilidade. Originou-se desde então uma forma de ver a escola, alunos e professores: alunos agrupados em classes graduadas; professores atuando individualmente; uns generalistas, outros especialistas; pedagogia centrada na sala de aula;  horários rigidamente determinados; saberes organizados em disciplinas. Esse sistema firmou-se com tanta força que ainda hoje é visto não só como melhor sistema, mas como o único possível.
O alvo de toda a crítica é a escola antiga, não a nova escola, pois esta é “libertadora e marca uma nova etapa no acesso do Homem à perfeição”. A quase ilimitada crença na escola como regeneradora, consolidou a imagem dos professores como sacerdotes e missionários ao mesmo tempo em que criou condições pra uma melhor formação e o desenvolvimento de uma reflexão científica na área da pedagogia.

Com a profissionalização o professor passa a ser visto, não como no antigo modelo do sacerdócio, mas como servidor do Estado e as crianças são categorizadas como alunos, passando ambos a ser encarados como populações e portanto torna-se necessário que sejam geridos por padrões institucionais próprios. Essa visão de “população escolar” teve como principal resultado as escolas de massas.
Ao processo de estatização e de profissionalização incorporou-se  a formação das ciências da educação. Temos nesse processo uma dicotomia que até hoje resiste:
“A eficácia da nova ideologia profissional implica a defesa da objectividade e a rejeição da história: a evidência científica tem de aparecer como fenômeno natural e não como uma construção social, como uma realidade atemporal e não como um processo histórico, com busca da ‘verdade pela verdade’ e não como um jogo de forças e de poderes.”

A proposição da cientificidade da pedagogia , nas primeiras décadas do século XX corresponde a um esforço de  valorizar o papel social e  prestígio científico dos novos educadores. Para Nóvoa, esses novos pedagogos exageram na caricatura da escola antiga para que o perfil das novas práticas das quais são portadores  sejam melhor delineadas, práticas que aprofundaram a crença total nas potencialidades regeneradoras da escola.

Nos anos 60, a escola passa novamente por severas críticas, chegando-se a propor uma sociedade sem escolas. Escola e professores passam a ser vilões e responsáveis, não só pela reprodução das desigualdades sociais,  mas também pela criação de novas desigualdades.

O professor ocupante, outrora de uma posição privilegiada, encontra-se agora acusado de mero reprodutor de informações. Para o autor, a partir daí se instala uma crise de identidade na profissão que até hoje persiste. O desconforto presente no íntimo da cada professor hoje, reside na distância entre a visão poética da profissão e a realidade concreta do dia-a-dia. A compreensão exata dessa crise pela qual passam os professores é, para o autor, condição sine qua non para que a educação e os docentes encontrem novos caminhos.

A crise de identidade

Nóvoa constata que há duas tendências no modo de encarar essa crise de identidade dos professores: uma externa e outra interna. A externa corresponde às formas de controle do professor. A  racionalização do ensino vê o professor como técnico que deve executar algo que não foi elaborado por ele e sim por outros, colocando assim em xeque a autonomia do professor. Simultaneamente, há a proletarização do professorado, advindo da sobrecarga de trabalho. A racionalização e a proletarização, segundo o autor, são dois momentos de um mesmo processo que tem no seu âmago a privatização que avalia/controla os professores pela satisfação dos “clientes”.

A segunda tendência evocada pelo autor, a interna à profissão docente, corresponde à busca de novos sentidos da profissão através da autonomia dos professores e das bases intelectuais do trabalho pedagógico.

Trazer novamente os professores para o centro dos debates, para Nóvoa é primordial, e propõe abordar a questão não pela coletividade, na qual as semelhanças são acentuadas e sim pela diversidade. Opta por falar, não em identidade, mas em processo identitário, processo pelo qual cada um de nós se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional.

“A forma como cada um de nós constrói a sua identidade profissional define modos distintos de ser professor, marcados pela definição de ideais educativos próprios, pela adoção de métodos e práticas que colam melhor com nosso modo de ser, pela escolha de estilos pessoais de reflexão sobre a acção.”

O autor propõe-nos duas perguntas: “Por que é que fazemos o que fazemos na sala de aula? Que saber mobilizamos na nossa ação pedagógica?”
A primeira pergunta leva-nos a pensar em vontades, gostos, preferências, rotinas que consolidam comportamentos. Cada professor tem o seu modo próprio de ser.  Se por um lado, os professores são resistentes a mudanças, principalmente àquelas que vêm “de cima”,  por outro são adeptos aos efeitos dos modismos pedagógicos. Hoje, devido a velocidade tecnológica, há uma invasão das modas no terreno pedagógico. Para o autor,  aderir a uma moda pedagógica é a “ pior maneira de enfrentar os debates educativos, porque  traduz uma ‘fuga para frente’, uma opção preguiçosa” e aponta a necessidade de os professores desenvolverem uma vigilância crítica ao que lhe for sugerido ou proposto. Qualquer inovação só tem sentido se for objeto de reflexão e de apropriação pessoal.

Para apontar a resposta da segunda pergunta, o autor demonstra como desde muito tempo os professores limitaram-se a compartimentar seus saberes, assumindo-se assim como transmissores de um determinado conhecimento científico. Essa postura é vista como retrógrada e de pouco valor, o que para o autor significa por um lado incompreensão, pois o processo de transformar as disciplinas científicas em currículo escolar é complexo e demanda do professor, não só conhecer a matéria que leciona, mas também compreender a forma como esse conhecimento se constituiu historicamente, ou seja, é necessário compreender os conteúdos para que se possa transformá-los em produtos de ensino. Por outro lado, a tentativa de banalizar esse processo é para Nóvoa, parte integrante de um processo, nada inocente, de relacionar a escolha da profissão de professor com o insucesso. Para o ensino iriam apenas os pouco competentes.

O autor salienta  a importância de se investir na pessoa do professor e nos saberes dele emergentes, os docentes devem apropriar-se de seus saberes e elaborá-los do ponto de vista teórico conceitual, desta forma serão criadores de instrumentos pedagógicos e profissionais críticos e não apenas executores e técnicos. Tendências que dicotomizam concepção da execução devem ser rejeitadas, assim como pacotes curriculares prontos a serem aplicados, que apenas servem para desperdiçar o tempo dos professores, tão necessário à reflexão e a produção de novas práticas.
Para o autor somente através da valorização intelectual  e consolidação da autonomia é que será possível aos professores enfrentar a crise e o desconforto nos quais têm vivido.

Escola e sociedade

Apontando primeiramente os perigos da idéia  da escola-toda-poderosa com professores com missão  de moralização da sociedade e logo após a crise de identidade dos professores, o autor associa as duas idéias afirmando a necessidade de uma nova relação entre a escola e a sociedade, na qual seja respeitado o direito das famílias e das comunidades de participarem da ação educativa e seja respeitada a autonomia dos docentes.
Vistos, muitas vezes, como antagônicos esses dois poderes (escola e sociedade) devem aliar-se, pois segundo o autor não há possibilidades de mudança na educação sem investir-se neles , para isso duas condições são necessárias: assegurar às famílias, principalmente, àquelas menos favorecidas, o direito de decidirem e de participarem da educação dos filhos e não imputar culpa aos professores da crise do sistema de ensino.

Por muito tempo, as famílias, principalmente as mais pobres, foram afastadas da educação formal dos seus filhos. Diversas razões eram dadas para justificar essa postura: a falta de instrução dos pais, a má influência do meio ou ainda os discursos que legitimavam o fracasso dos menos favorecidos. O autor reafirma assim, a impossibilidade de qualquer mudança sem investir-se positivamente no poder das famílias e da comunidade.

Simultaneamente, para que novos rumos sejam vislumbrados na educação torna-se necessário investir de forma positiva os poderes do professor. Vivendo cotidianamente num paradoxo, os professores, por um lado são vistos como medíocres e mal formados, por outro são apontados como elementos essenciais para a melhoria da qualidade do ensino e do progresso social e cultural. Bem adequada é a frase usada por Nóvoa: “Pede-se-lhe quase tudo. Dá-se-lhe quase nada”.Frase que torna ainda mais verdadeira se acrescentarmos que com a expansão do trabalho feminino, na segunda metade do século XX, os pais têm cada vez menos tempo para os filhos, imputando à escola e aos professores novas tarefas.

Em meio a essas contradições é que os professores devem refazer uma identidade profissional tanto individual como coletivamente. Uma imagem nova sem os simplismo das antigas metáforas. Embora a literatura pedagógica atual também estabeleça novas metáforas, estas são menos simbólicas e mais conceituais. As imagens que elas evocam apontam, segundo Nóvoa, para três linhas de consenso: da valorização do trabalho teórico e intelectual do docente; da vontade de construir um saber docente baseado na reflexão sobre suas práticas e da certeza da necessidade de usufruir uma real autonomia.

Mais uma vez há reafirmação da necessidade de os poderes das comunidade e os poderes dos professores sejam articulados em torno de um mesmo projeto de democratização da escola. Vislumbrando que   após os ciclos Igreja e Estado, talvez seja essa a nova reconfiguração do campo educativo. Para o autor o fim do Estado educador é previsível e para tanto é necessário pensar em novos moldes nas relações escola e sociedade.

Antonio Nóvoa menciona que embora as comunicações e a tecnologia tenham ajudado a criar uma consciência planetária, por outro lado surgiram novas exclusões sociais e largas camadas sociais ficam à margem dos benefícios sociais e culturais. Sendo assim a escola e os professores não podem permanecer com um discurso socialmente isento: “Todo o silêncio é cúmplice... não podemos calar a voz das injustiças que se reproduzem também através da escola”. Ou seja, para o autor, o professor distingue-se de muitos outros profissionais, não se restringe apenas a critérios técnicos e competências científicas, mas também que possua ou desenvolva valores e princípios que os levem a crença de que toda a criança pode ter sucesso na escola. Poderíamos chamar essa “crença” de ética profissional docente.

O autor convida-nos ainda a uma redescoberta da função social da utopia e das pequenas utopias que dão novo sentido ao nosso cotidiano.

Por fim, após discorrer um inventário de instituições, intelectuais, fundações e empresas que, por este ou aquele motivo, afastaram-se das preocupações com a sociedade, nosso autor volta-se à escola como único lugar onde se concentra o maior número de pessoas qualificadas e nos pergunta: “Será que pertence à escola um papel primordial na tarefa de pensar o futuro?”. Frente à resposta positiva, vemos que novamente  todas as esperanças voltam-se para a escola. E o  grande desafio está mais uma vez nas mãos dos professores.

 
Antonio Nóvoa é Licenciado e Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra, onde também foi assistente, é professor associado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. É vice-presidente da Sociedade Portuguesa das Ciências e da Educação, onde coordena a secção de História da Educação. É autor publicado em Portugal e em outros países, de variadas obras sobre Educação

Nota: Resenha realizada para a disciplina Educação, Cultura e Sociedade - Profª Dra. Francisca Eleodora Severino.





3 comentários:

  1. Excelente trabalho, de grande conteúdo. Parabéns!

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  2. Realmente é preciso ressignificar o papel da escola o grande obstáculo são as políticas públicas que sobrecarregam os professores de tarefas e que distorcem o verdadeiro papel dos professores.

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  3. Boa tarde. Qual referencia bibliográfica tomou como base esta resenha? Desejo ler o livro. Se poder envie no meu e-mail: marcocafe04@hotmail.com ou marcoantonioselva@gmail.com

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